Um conto de dois Tarcísios

EDITORIAL

Coincidências e comparativos são sempre eficientes para a construção de textos e apresentação de argumentos. Aqui, vamos falar de dois perfis de uma mesma pessoa. Esse é o conto de dois Tarcísios. Formado pela Universidade Federal de Santa Catarina, Tarcísio Rosa é Engenheiro Eletricista. Iniciou a carreira na Eletrosul e quando a empresa foi privatizada escolheu ficar na parte privada, comprada pela Tractebel. Passou pela Eletrobras e chegou à Diretoria e depois à Presidência da Eletrobras Amazonas, uma das distribuidoras de energia incorporadas pela estatal nos anos 2000. Foi indicado para a Presidência da Celesc em 2023, tendo sido destacado pelo dito “perfil técnico”.

 É neste perfil técnico que se apresenta Tarcísio. No dia 9 de abril, durante a Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc) que debateu a Celesc Pública na presença de mais de 600 trabalhadores da empresa de todo o estado, quem subiu ao palco sob as vaias do público foi o “Tarcísio Técnico”. Essa foi a imagem que ele tentou vender, pelo menos. Logo no início destacou que a Diretoria da Celesc é composta por 5 empregados de carreira da empresa e que os demais teriam perfil técnico, ele incluído, pelo seu histórico de 47 anos de atuação no setor elétrico.

 Sempre que um Diretor de uma estatal afirma que é um quadro técnico, já existe uma piada de mau gosto, afinal de contas, se foi indicado pelo governo, ele é uma indicação política. Ao se afirmar como “técnico”, Tarcísio quis negar que age de forma ideológica. Para ele, uma atuação ideológica seria movida por paixões e um burocrata, técnico e focado no trabalho regulado pela conformação do mercado não pode ser assim.

 Mas de cima do palco, irritado pelo desprezo dos celesquianos e pelas manifestações do Coordenador da Intercel, Mário Jorge Maia, e do Representante dos Empregados no Conselho de Administração, Paulo Guilherme Horn, que expuseram uma gestão que precariza as condições de trabalho, sobrecarrega e adoece trabalhadores e impõe à população um serviço também precarizado, quem falou ao microfone foi o Tarcísio Ideológico. O Tarcísio soldadinho do capital privado. O Tarcísio Privatista.

 Nos últimos tempos, a incidência de eventos climáticos extremos tem aumentado em todo o país. Santa Catarina figura entre os estados mais castigados por tornados, tempestades, enchentes, enquanto só agora outros estados têm entrado na rota das calamidades. Se em Santa Catarina o serviço prestado pelos celesquianos se destaca pela qualidade e responsabilidade, sendo elogiado pela população e reconhecido pelos órgãos fiscalizadores, as empresas privadas que atuam em outros estados atingidos têm sido alvo de críticas contundentes da sociedade, dos órgãos de fiscalização e do próprio poder público. O planejamento de Tarcísio Rosa para a Celesc segue a mesma cartilha. A recusa em recompor o quadro de pessoal e o aumento da terceirização são bandeiras transcritas na gestão da empresa e a exposição nas falas das representações dos empregados irritaram o Presidente.

 Tarcísio leu um resumo de “ações e resultados” de sua gestão. Destacou o plano de investimentos como o maior da história; a expansão e modernização do sistema elétrico, com várias obras sendo realizadas; a rede trifásica no meio rural; os investimentos em eletropostos; entre outros pontos. Mas o grande destaque foi o financeiro: lucro recorde de R$ 715 milhões em 2024. Com essa lista de realizações, Tarcísio quis enfrentar a realidade e enfrentar o Representante dos Empregados no Conselho. No púl pito, voltou-se de frente para o Conselheiro e questionou: “Precarização? Onde, Conselheiro?!”.

 A bravata encontrou a ira da plateia. Primeiro, porque negar a precarização para quem sofre dela é ridículo. Segundo, porque atacar a representação desses trabalhadores diante deles é burrice. Os celesquianos vaiaram, criticaram a tentativa de constranger o Conselheiro e ainda recomendaram: vá à base que você verá como sua gestão precarizou o trabalho. O Tarcísio Ideológico foi engolido pelo repúdio dos trabalhadores e, covardemente, se colocou em posição de vítima, pedindo respeito.

Tarcísio ainda mentiu, dizendo que os resultados de continuidade da empresa eram os melhores da história. Uma breve pesquisa nos relatórios divulgados pela sua própria gestão já mostra a piora do DEC de 2024 em relação a 2023. Tentar usar um dado errado para convencer um público que sente na pele a precarização, dificultando o atendimento à população é uma péssima estratégia. Mentiu de novo, ao dizer que não foi avisado dos problemas antes da migração do sistema comercial, tendo sido desmentido na fala do Diretor do Sinergia, Lucas Henrique da Silva.

Por fim, quis novamente atacar o Conselheiro eleito pelos trabalhadores, dizendo que as decisões passam pelo Conselho de Administração e que os empregados elegem um membro deste Conselho, como se dissesse que esse modelo de gestão tinha respaldo do Representante dos Empregados. Mas todos os trabalhadores sabem que não tem, que a representação dos empregados tem denunciado as mazelas da gestão Tarcísio e que dentro do Conselho os empregados têm um só voto, que sempre é contrário às investidas privatistas e à ótica privada que o Presidente da Celesc tanto defende.

 A verdade é que é impossível equilibrar estes dois Tarcísios. Ele mesmo já não consegue uma composição entre suas posições e a promessa do Governador do Estado, Jorginho Mello, de não privatizar a distribuidora catarinense. Tarcísio, convicto que a privatização é o caminho, planeja a Celesc desta forma, na contramão das posições do Governo, externadas pelo Deputado Estadual Ivan Naatz e pelo Secretário da Casa Civil Kennedy Nunes, que reafirmaram o compromisso do governador contra a privatização.

 Mas o Tarcísio que se sobrepõe é o Tarcísio Ideológico. O Presidente da Celesc é amplamente favorável às privatizações. Em sua gestão na distribuidora de energia amazonense, foi o maior defensor da venda da estatal, tendo classificado sua privatização como “missão cum prida”. Em entrevista ao colunista Moacir Pereira, em 2023, se posicionou contrário à reestatização da Eletrobras. Em entrevista à Rede Catarinense de Notícias, ainda em 2023, Tarcísio Rosa foi questionado sobre os problemas de atendimento da Enel. Para o Presidente da Celesc, o problema foi de comunicação, minimizando os impactos da privatização no atendimento à população. Parece paradoxal que o Presidente de uma distribuidora de energia elétrica pública, que tem um grande histórico de bons serviços prestado à população contemporize o desastre da Enel em São Paulo. Mas a condição de Tarcísio Rosa na Celesc é mesmo paradoxal. Tarcísio é um privatista. Suas declarações dão conta de que a privatização é, para ele, uma oportunidade. Mais do que questões ideológicas pessoais, criticar a Enel seria, para Tarcísio, criticar a si mesmo.

 Em fevereiro deste ano, em entrevista ao jornalista Marcelo Lula, Tarcísio afirmou que a privatização é um “caminho que deve ser tomado”. Em março, refirmou a ideia durante manifestação na Comissão dos Direitos do Consumidor e do Contribuinte e de Legislação Participativa, na Alesc. Pois durante a Audiência Pública Tarcísio foi questionado, novamente, de forma direta sobre sua posição. Defende a empresa pública ou a privatização? Tentou fugir, dizendo que defende uma empresa que “sempre cresce, porque empresa que não cresce, desaparece”. A rima não colou. Pior, Tarcísio foi ainda achincalhado nas manifestações do público, com auxílio de sua própria rima, quando questionado se o “desaparecimento” da Amazonas Energia após sua gestão foi incompetência ou safadeza.

 O conto de dois Tarcísios remete ao clássico da Literatura inglesa “Um conto de duas cidades”, escrito por Charles Dieckens. O livro se passa em Londres e Paris e aborda os acontecimentos que fizeram eclodir a Revolução Francesa, numa crítica social intensa, com a denúncia dos abusos e arbitrariedades praticadas pela nobreza e os efeitos da desigualdade social em uma população sedenta por justiça e vingança. Dieckens escreve: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice, foi a época da fé, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário”.

 O Tarcísio Rosa verdadeiro é a idade da tolice, sem sombra de dúvidas. Tarcísio defende a terceirização e redução de quadro de pessoal próprio – a síntese da privatização – e ataca os próprios celesquianos que se dispõem a lutar. Aliás, provocou a categoria desde o início de sua fala na Audiência Pública, insinuando que quem estava ali não estava trabalhando. Essas provocações receberam respostas à altura. As vaias à Tarcísio são a manifestação mais clara do repúdio dos celesquianos a um Presidente que não tem tamanho para conduzir a maior estatal catarinense. Como disse na audiência o Diretor do Sindinorte e ex-Representante dos Empregados no Conselho de Administração, Jair Maurino Fonseca: “Tarcísio, você não é digno de ser Presidente da Celesc”.

 A França do livro de Dieckens foi palco de uma grande revolução. Uma revolução de paradoxos, mas que levou à queda da Bastilha. Dela, uma frase de Jean Meslier sobressai, mas parece mais adequada a adaptação feita por estudantes franceses do Comitê de Ocupação da Sorbonne nas manifestações de maio de 1968: “a humanidade não será feliz até que o último capitalista seja enforcado com as tripas do último burocrata”.

 Que venha a revolução. 

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