O Brasil nunca viveu tantos problemas de apagões e quedas seguidas de energia como nos últimos meses
Após o apagão de 15 de agosto, onde sofreram desligamentos 25 estados e o DF, nas últimas semanas os quatros cantos do Brasil têm vivido um verdadeiro caos! Apagões em cidades inteiras, dificuldade no restabelecimento da energia e desculpas desencontradas dos governantes – cada vez mais perdidos em estados/municípios afetados. Afinal, por que estão acontecendo tantos apagões no país? É verdade que o recrudescimento das altas temperaturas, alavancadas pelo aquecimento global, trouxe efeito devastador no combalido setor elétrico brasileiro privatizado. Mas o outrora robusto setor elétrico deveria estar pronto para resistir a essas reações adversas ou, minimamente, estar pronto para restabelecer com velocidade e eficácia os eventos de blecaute que assolam a população. Por que isso não acontece? Há anos o Coletivo Nacional dos Eletricitários alerta para os riscos decorrentes dos processos de privatizações no setor elétrico e para as consequências que não costumam demorar nestes casos. Foram centenas de boletins, audiências públicas debatendo os efeitos de privatizações em setores de infraestrutura, fundamentais para a vida do cidadão comum.
A despeito das altas temperaturas decorrentes do aquecimento global, há uma recorrente equação de fatores que fragilizam o setor elétrico pós privatização. Primeiramente, a política de desinvestimentos que precede as privatizações na maioria das vezes ignora a necessária avaliação de modernização e até substituição de equipamentos antigos/obsoletos que, em períodos de sobrecarga, podem sucumbir. Além disso, nos períodos de alta temperatura os equipamentos de engrenagem do setor elétrico superaquecem e ficam sobrecarregados pelo alto uso de aparelhos de refrigeração e equilíbrio de temperatura. Como agravante, depois das privatizações, profissionais experientes são desligados em grandes ondas de plano demissão. E quase sempre são processos rápidos, visando diminuição do custo de pessoal e sem tempo e planejamento para transmissão do conhecimento aos novos empregados e retenção do capital intelectual para a empresa. Essa equação nefasta de desinvestimento e demissões que fragiliza o setor elétrico privatizado, que o torna mais exposto a apagões e que dificulta o restabelecimento da energia, foi usada e propagada pela Eletrobras e suas subsidiárias, bem como nas distribuidoras privatizadas nos anos 90 e tantas vezes “reprivatizadas” ao longo dos anos. A cartilha da Eletrobras é a mesma da Enel que apagou São Paulo, Goiás e interior do Rio, da Light que junto com Furnas apagou o Rio de Janeiro, a Equatorial e a Energisa apagaram o nordeste junto com a Chesf, da NeoEnergia que por vezes apagou Brasília desde a privatização da CEB. O episódio do Diretor da Enel depondo na CPI do Apagão na Assembleia Legislativa de São Paulo e a sessão interrompida por um novo apagão foi uma piada pronta.
O anúncio prévio da ENEL de que São Paulo teria novos apagões no último fim de semana foi uma sinalização de descontrole e falta de rumo. Nesse cenário, manifestações em São Paulo (Brazilândia) e Rio de Janeiro (Rocinha) e tantas outras com incêndios e barricadas são peculiares de uma população fragilizada e revoltada sempre que é tolhida de insumos necessários, essenciais para a vida, como água e energia. Quando o povo sai às ruas, a classe política se retrai, se mobiliza e tenta conter danos. No caos, o custo político é altíssimo. Cabe registrar que a “mudança de discurso” de autênticos liberais contra as empresas privatizadas como Tarcísio (governador de SP) e Ricardo Nunes (prefeito de SP) é meramente oportunista. Agora eles condenam a gestão privatizada por medo de perderem capital político no caos que toma conta do setor elétrico, mas sempre foram a favor do estado mínimo. Tarcísio modelou a privatização da Eletrobras e agora corre para privatizar a SABESP. Tarcísio e Ricardo podem ser qualquer coisa, menos burros! Sabem que a história comprova que apagões em série trazem custo político devastador e são verdadeiros cemitérios de reputação. No início deste século, a política desenfreada de liberalização do setor elétrico na Califórnia culminou com o escândalo da ENRON, derrubou o governador do estado e deu vida ao então novo governador, o ator Arnold Schwarzenegger, primeiro grande outsider na vida pública deste século – e tudo por descrença total na classe política tradicional. No Brasil, a política de desinvestimento em geração/transmissão de energia e a desenfreada privatização das distribuidoras nos anos anteriores de governo Fernando Henrique Cardoso, culminou no fatídico apagão de 2001. Chamado “carinhosamente” de racionamento de energia, começou em 17 de maio daquele ano e durou nove meses. Desde então, cerca de um terço da iluminação pública das ruas foi apagada. Como medida, o governo também determinou o racionamento por parte de consumidores residenciais e industriais no DF e mais 16 estados das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste. A conta de luz sofreu uma série de alterações, com previsão de multa e até corte de energia para quem não cumprisse as determinações de reduzir em 20% o consumo de energia elétrica. Essa crise ocorreu no último ano do segundo mandato de FHC e foi um dos fatores preponderantes para o desgaste da política de desestatizações e a quebra de ciclo de governos do PSDB (partido de FHC).
Agora, no apagão de 15 de agosto, quando o Brasil ficou às escuras, ninguém foi procurar o presidente da Eletrobras privatizada, apontada desde o início como responsável pelo evento zero. Procuraram o Ministro de Minas e Energia, o Diretor Geral da ANEEL e o Diretor Geral do ONS. É sempre assim: o serviço é privado, mas a concessão é pública. O custo político das privatizações no setor de energia elétrica é avassalador quando a conta chega. E é sempre o governo que paga! No governo Bolsonaro, quando o estado do Amapá apagou por 22 dias por conta de desinvestimento, péssimo equipamento e quarteirização de mão de obra, por má gestão de uma empresa espanhola de uma linha de transmissão, quem socorreu o estado foi a Eletrobras Eletronorte, que ainda era pública. E agora, quando a Eletrobras privada falhar, quem a socorre? Pelo mundo, segundo estudo do Transnational Institute, mais de mil empresas foram reestatizadas neste século, com destaque para países centrais do capitalismo, como EUA, França e Alemanha. Os principais setores reestatizados foram os serviços públicos essenciais: desde fornecimento de água e energia, até coleta de lixo. A onda das reestatizações ocorre 30 anos depois da epidemia neoliberal que tomou conta da Europa e EUA no fim dos anos de 1970 e no início de 1980.
O diagnóstico para a retomada de serviços essenciais ao Estado é quase sempre o mesmo: não há investimento para expansão e manutenção da malha e, com isso, há piora nos serviços. As tarifas crescem e as agências reguladoras perdem poder por conta de decisões judiciais e a maior parte dos lucros e dividendos são desnacionalizados, uma vez que a maior parte das vencedoras de leilões pelo mundo são empresas multinacionais, sediadas em outros países. Na contramão do mundo, o Brasil privatizou a Eletrobras no governo Bolsonaro, e o atual Ministro de Minas e Energia sugere simplesmente estender por 30 anos as falidas concessões privatizadas de distribuição de energia. Por tudo isso, é imperativa a discussão do futuro dessas concessões, do controle dessas empresas. No caso da Eletrobras, gigante do setor de geração, transmissão, transformação e comercialização de energia, é fundamental que se dê celeridade às ações para a retomada do poder de voto e intervenção da União na Assembleia de Acionistas. A discussão está no Supremo Tribunal Federal através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7385/2023.
No caso das distribuidoras privatizadas nos anos 1990 que prestam péssimos serviços em todo o Brasil, a solução proposta de renovação automática das concessões é absurda! É naturalizar apagões e legitimar o descaso com a população que paga caro por um serviço de baixa qualidade. É preciso avaliar caso a caso e ampliar o debate! Ou levamos esse assunto a sério enquanto há tempo ou vamos amargar as consequências de um descontrole generalizado no setor elétrico brasileiro privatizado. Por fim, o Coletivo Nacional dos Eletricitários alerta: se nada for feito pelo Governo Lula naquilo que lhe cabe, se todos os pedidos para intervenção do Estado Brasileiro enquanto Poder Concedente no setor elétrico brasileiro forem ignorados, continuaremos tendo apagões cíclicos, em espiral, e os donos das empresas no máximo vão sair do Brasil e gastar suas fortunas acumuladas em alguma ilha paradisíaca. Mas o governo será responsabilizado e como sempre pudemos ver, o custo político é alto. Que haja luz para iluminar as melhores decisões. Nós, do CNE, como sempre, avisamos.
Sigamos na luta!